Tribunal condena soldado do Exército por injuriar sargento negro
Um Inquérito Policial Militar (IPM) foi aberto porque na manhã do dia 8 de junho de 2020, o soldado do 5º RCMec teria ofendido a honra de um terceiro-sargento, ao utilizar expressões depreciativas em relação à raça e à cor da vítima. O episódio ocorreu na seção de cães do Regimento, quando o acusado teria usado expressões como “garanto que aquele nego já foi fazer fofoca, que nego bem fofoqueiro”. Ainda no mesmo dia, o soldado, em áudio enviado ao outro militar, se referiu ao militar nos seguintes termos: “este negão tá toda hora, toda hora se metendo nas baias, toda hora achando que manda aqui”.
Naquele dia, a vítima procurou uma aspirante a oficial relatando que havia presenciado uma discussão entre dois soldados. A oficial foi ao local e, ao interpelar um dos soldados, ele informou que nada de especial havia acontecido, sendo normal o tom da conversa que havia mantido. Mas ao virar as costas, ela ouviu o acusado proferir as frases ofensivas. Ela voltou e o admoestou sobre o episódio, dizendo que ele estava sendo descortês. Mas recebeu como respostas: ‘Te liga não, já estou dando baixa mesmo’.
O militar foi denunciado pelo Ministério Público Militar (MPM) pelo crime previsto no artigo 140 do Código Penal comum (injúria racial). Na primeira instância da Justiça Militar da União (JMU), na Auditoria de Bagé (RS), 2ª da 3ª CJM, em sessão de julgamento realizada em agosto de 2021, o Conselho Permanente de Justiça (CPJ) condenou o acusado, por unanimidade. Mas os cinco juízes do Conselho mudaram o enquadramento do crime para o artigo 216 do Código Penal Militar (injúria). O Conselho usou o emendatio libelli, um instituto do direito processual penal, incidente na acusação, cujo efeito implica na alteração da classificação do crime, seja por erro silogístico ou na narrativa fática. O instituto trata da possibilidade de emendar, reparar ou consertar a acusação quando a inicial acusatória contiver um erro de classificação do delito. Nele não há alteração dos fatos imputados, pois foram corretamente descritos pela acusação, mas sim alteração da classificação jurídica da conduta (tipificação).
Após a decisão, tanto o MPM, que queria uma pena maior, quanto a Defensoria Pública da União (DPU), que requereu a absolvição, recorreram da decisão junto ao Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília. Em suas razões de recurso, a defesa do soldado disse não ter havido o dolo de injuriar o sargento. “Corroborando o arcabouço probatório produzido em juízo, além de inexistir a intenção de ofender a honra do 3º Sargento, o fato é que as palavras sequer foram proferidas diretamente ao ofendido, nem mesmo com o intuito de que fossem posteriormente direcionadas a ele. O ofendido somente ficou sabendo por terceiros que o acusado teria falado algo sobre a sua pessoa”, argumentou.
Ainda segundo a defesa, nas duas oportunidades das condutas narradas, o acusado estava reportando os fatos aos seus superiores. “Jamais teve o intuito de que suas palavras chegassem ao conhecimento do ofendido”, disse o advogado. Em relação à qualificadora de injúria racial, a defesa ponderou que não seria possível determinar que o acusado estivesse imbuído dos ideais nefastos. “Muito pelo contrário, há prova nos autos de que o ofendido era chamado de ´negão´ publicamente por outras pessoas, mas nem por isso todos que o chamavam de ´negão´ estão sendo processados pelo delito de injúria racial”.
Por sua vez, O MPM pediu a reforma da sentença para manter as sanções do art. 14º do CP comum (injúria racial), na presença de várias pessoas, por duas vezes, com aumento de pena.
A apreciar o caso, o ministro Francisco Joseli Parente Camelo negou provimento a ambos os recursos. Ao rebater os argumentos do MPM, o relator disse que, primeiramente, concordava com o MPM quanto à gravidade do tema relacionado à injúria racial. “Tanto o é, que o STF equiparou a injúria racial ao crime de racismo, considerando-a imprescritível. Contudo, analisando os autos e todos os relatos testemunhais, bem como o interrogatório do acusado não se mostrou possível afirmar, com a certeza exigida, que o acusado teve a intenção de ofender a vítima em razão de sua raça ou sua cor. De fato, como se ficou provado nos autos, ouve a ofensa, a injúria, em um momento de insatisfação e raiva por parte do ex-militar em relação ao sargento, todavia, afirmar que isso envolveu questões raciais já se mostra profundamente preocupante, afinal, é fundamental a existência do dolo com o elemento subjetivo especial de discriminar o ofendido em razão de sua raça ou cor, por exemplo”.
Ao rebater os argumentos da defesa, o ministro disse as próprias palavras do acusado e as informações trazidas pelas testemunhas convergem, confirmando que o acusado realmente proferiu palavras ofensivas contra o ofendido. “As provas testemunhais são incontestes. Assim, injuriar significa ofender ou insultar (vulgarmente, xingar), todavia, para a caracterização do delito, não basta só isso, é necessário que a injúria atinja a dignidade ou o decoro da pessoa ofendida. Portanto, é um insulto que macula a honra subjetiva, arranhando o conceito que a vítima faz de si mesma, o que ficou caracterizado no presente caso. Nesse ínterim, não vislumbrando quaisquer excludentes de ilicitude ou de culpabilidade, não há motivos para reformar a Sentença condenatória”, decidiu o relator, que manteve íntegra a sentença de primeiro grau. Por maioria, os ministros do STM acompanharam o voto do relator.
Apelação nº 7000777-38.2021.7.00.0000